20.7.09

The Spirit

The Spirit

Dos quadrinhos de Will Eisner ao filme de Frank Miller

Will Eisner é uma área cinza entre a Graphic Novel e o Cartoon. E não há tom pejorativo nesse cinza. Eisner começou a publicar suas obras nos anos trinta, época em que uma tirinha de jornal era dar quadrinhos demais para um simples cartum. Mas foi nas tirinhas do American Sunday que Eisner, com seu traçado romântico, promoveu o começo da revolução do senso comum a respeito dos quadrinhos. No lugar da simples distração infantil, Eisner introduziu o quadrinho adulto e seqüencial. O sucesso de The Spirt nos early 40's levou o Sunday a incluir uma seção comics de 16 páginas, sendo The Spirit a principal atração do caderno.

Em 2008, Frank Miller, outro gênio dos quadrinhos - reinventor de Batman e Daredevil e criador de Sin City e 300 - trouxe para o cinema o personagem de Eisner. O filme não teve muito sucesso nas bilheterias e a crítica não gostou muito da releitura do Spirit à moda Miller. Para quem não é muito ligado nos quadrinhos, pode também ter sido uma decepção assistir The Spirit em meio ao frenesi de quadrinhos no cinema, embalado por Batman, Spiderman, Hulk, X-Men, Wolverine, Sin City e até Watchmen. Muita coisa deve ter parecido fora do lugar, ingênuo ou pastelão demais para os desavisados. Mas é aí que mora a beleza da obra e eu quero aqui usar a história dos quadrinhos em defesa do filme de Frank Miller.

O gurizão de hoje, que já consumiu Batman, Daredevil e Spiderman, pode achar que Spirit é só mais um justiceiro noturno defensor da cidade. O velho discurso e dessa vez sem nenhuma novidade, até menos recheado. Sim, porque vivemos tempos onde o simples justiceiro implacável já não satisfaz o público. Chega de Superman e sua bondade repugnante. Queremos equipes mutantes como X-men, anti-heróis como Wolverine, ou até equipes de anti-heróis como Watchmen.

Mas a verdade é que a invenção de Spirit é anterior à tudo isso, contemporânea à criação de Batman no último minuto dos anos 30. Não haviam, portanto, referenciais e muito menos clichês. O HQ como conhecemos hoje ainda era um cartum em transição, tirinhas em expansão. As histórias de Eisner estavam recém acostumando o público aos temas adultos, mas ainda se valendo do traço e do humor ingênuo da época. E sinceramente, o humorzinho inteligente de hoje em dia está saturando, e essa retomada da graça pura faz bem de vez em quando. (É por isso que Seinfeld sempre teve espaço para os tropeços do Kramer e até os mangás da febre moderna recorrem ao humor pastelão).

O ambiente da época ainda lhes permitiria uns 20 anos de vantagem para usufruir do clima Noir, até o final dos anos 50. E mais uma vez, era o Noir original, em desenvolvimento, não o Noir-referência de hoje em dia. Por isso, encontramos em The Spirit tanto jogo de sombras, tantas femme-fatales e um herói que por vezes mais parece um detetive secreto. Por mais vanguardista que fosse, enquanto fazia o Spirit, Eisner ainda era essencialmente um cartunista em libertação, até seu final em 1952. Somente em 78 Eisner publicou o que definitivamente pode se chamar de Graphic Novel, A Contract With God, considerada a primeira do gênero. E tudo isto foi transposto do original ao cinema com preservação e respeito por parte do Frank Miller. E acho que essa análise histórica explica e resolve todas as estranhezas dos espectadores novatos: The Spirit não é um filme de HQ. É um filme de HQ antiga, quase Cartum.

Mas é também um filme de Frank Miller. E Frank Miller não é dado a convencionismos. Ele homenageia Eisner, mas no embalo de Sin City e 300, jamais faria um filme que não tivesse o seu espírito. A ruptura se deu na parte visual, que puxou muito para o Sin City bem ao gosto de Miller, e restou pouco do traço cartunista de Eisner (mas restou algo). Frank Miller tem uma bagagem respeitável quando se trata de reinventar personagens. Se não fosse por ele, Batman jamais se entitularia o "Cavaleiro das Trevas" e estaria até hoje usando uma elipse amarela no peito de um uniforme cinzinha*.

Por tudo isso, The Spirit, filme de Frank Miller baseado na obra de Will Eisner, é uma obra-prima. Mais do que ser um blockbuster, é um filme que preocupa-se em oferecer uma forte experiência estética ao espectador e uma justa homenagem ao precursor das Graphic Novels.

A versão em DVD traz nos extras uma ótima entrevista com Frank Miller, onde ele fala sobre a evolução dos quadrinhos e o seu envolvimento com essa mídia. Conta como ganhou moral para promover mudanças radicais em personagens clássicos. Discorre sobre o formato das HQs de hoje que são uma limitação estúpida oriunda dos antigos jornais dobrados ao meio (formato HT = Half Tab = Meio Tablóide). E fala sobre o formato vertical da cidade, representado em Sin City e Spirit, em contraposição ao formato horizontal das paisagens abertas, motivo que o levou a publicar 300 em formato paisagem.

"Gosto de de bater o pincel no punho e ver a tinta respingar na folha e no rosto dos personagens. Já não acredito mais em erros". Sim, ele pode.

*As semelhanças são grandes entre Spirit e Batman, pois Will Eisner e Bob Kane trabalharam juntos na época da criação de seus personagens. E Frank Miller além de reinventar o Batman, revitalizou o Daredevil, personagem que eu entendo ser o "Batman da Marvel". Aliás, o Daredevil é cego. Uma característica que cairia perfeitamente ao homem-morcego, mas parece que passou despercebida pela DC Comics. Quem sabe mora aí a origem de uma nova era para o Batman? Pra quem já matou e ressucitou o Superman, isso até que seria sutil.

The Spirit COver

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