"As idéias na Terra eram sinais de amizade ou inimizade. O conteúdo delas não tinha importância. Amigos concordavam com amigos com o objetivo de expressar amizade. Inimigos discordavam de inimigos com o objetivo de expressar inimizade."
As concordâncias prosseguiram, não em nome do senso comum, da decência ou autopreservação, mas por amizade.
Os terráqueos seguiram sendo amistosos, quando deveriam estar pensando. E mesmo quando criaram computadores para pensar um pouco por eles, projetaram-nos não tanto para a sabedoria quanto para a amizade. Assim, estavam condenados."
VONNEGUT, Kurt - Café da Manhã dos Campeões.
6.6.10
Bad Idea
3.3.10
O Papel do Livro
Chico Homem de Melo, em seu livro "os desafios do designer" faz uma observação interessante sobre as revoluções na mídia literária. Gutenberg promoveu uma mudança drástica no processo de produção em série. Mas ele não modificou a concepção dos livros e a forma de leitura. A primeira grande revolução na literatura aconteceu muito tempo antes, quando trocamos os rolos de pergaminhos (onde um livro era uma página contínua de rolagem horizontal) pelo formato de códice, ou seja, uma pilha de páginas retangulares, encadernadas. Na passagem do manuscrito à prensa tipográfica de Gutenberg, o formato dos livros permaneceu o mesmo.
Com o surgimento da internet, aí sim, soltamos as amarras do formato encadernado e, de certa forma, até retornamos à página contínua, só que agora a rolagem é prioritariamente vertical, na tela do computador. Agora, com o surgimento dos e-books, mais uma revolução de formato acontece, pois o livro virtual pode ser carregado no bolso. Mas não precisa ser folheado, e não precisa ser impresso, pode conter áudio, vídeo, interação.
Assim, dadas as possibilidades, projetar e escrever para e-books é muito mais do que apenas um bom texto. O livro do futuro não pode ser uma mera transcrição do papel para a tela. Há de se quebrar essa fronteira do simples "texto corrido" e passar a pensar em formatos totalmente novos e dinâmicos. Essa é a verdadeira revolução: não da mídia, mas do conteúdo.
Meu palpite pessoal? mesmo com tudo isso, o livro de papel, o jornal impresso e a revista, nada disso vai desaparecer. Não enquanto as novas tecnologias não puderem reproduzir com exatidão o aconchego do toque, da textura, do olfato no contato com o material impresso. E além disso, se é pra tentar imitar, melhor deixar o original (real) que cumpre bem o seu papel. O virtual deve vir a acrescentar, oferecer possibilidades novas, e não para substituir e fazer exatamente a mesma coisa que o papel já faz, com excelência.
Por tudo isso, eu acredito muito mais no iPad do que no Kindle. Ambos são capazes de armazenar o conteúdo de milhares de livros, sem ocupar espaço. Ok. Mas enquanto o Kindle tenta imitar uma folha de papel (se eu quisesse uma folha perfeita, eu comprava o livro de verdade), o iPad é capaz de oferecer muito mais recursos de mídia e interação do que apenas uma imitação do livro de papel. Além de, é claro, oferecer muito mais recursos do que apenas a leitura de livros.
Algumas pessoas criticam muito o iPad por causa da sua tela de LCD. Isto tornaria a leitura cansativa e, supostamente, ninguém aguentaria o cansaço ocular de ler um livro inteiro em uma tela luminosa. Já o Kindle tem uma tela que não emite luz e seria menos cansativo.
Mas o Kevin Rose, fundador do Digg.com, levantou um ponto pertinente em um episódio recente do Diggnation: Todos nós passamos horas a fio em frente ao computador, olhando para enormes telas de LCD. A maior parte deste tempo, estamos LENDO. Emails, blogs, notícias, twitter, forums, etc. Somando tudo, talvez muitos de nós lemos o equivalente a um livro por dia, ou mais, na tela do computador. E ninguém sai escandalizado com os olhos terrivelmente danificados por isso.
Na telinha do iPhone, na palma da mão, a experiência é ainda mais agradável. Basta ser prudente e ajustar corretamente o brilho da tela e o tamanho da fonte. No iPad só pode ser melhor ainda.
10.12.09
IAUÊBA!
É impressionante a quantidade de considerações que nosso cérebro é capaz de realizar em milésimos de segundos, quando não pensamos com palavras. Se você tropeçar e estiver prestes a arrebentar os óculos contra uma parede, seu cérebro é capaz de pensar "não posso quebrar os óculos" a tempo suficiente de fazer alguma coisa. Mas é claro que estas exatas palavras não soam na sua cabeça. Tal pensamento acontece instantaneamente.
Pois outro dia fui vítima de uma situação assim. Meu cérebro pensou muitas coisas no intervalo de tempo em que eu tentava emitir uma palavrinha minúscula, me fazendo mudar de idéia sobre o que eu estava dizendo durante a fala. O resultado foi um tanto patético.
Fui buscar meu carro na garagem e ao passar pelo funcionário do estabelecimento prontifiquei-me a cumprimentá-lo, dizendo IAÊ!. Mas antes que eu terminasse de falar (talvez antes mesmo que eu começasse), o cara soltou um ÔBA!
Tentei adaptar minha saudação à dele, retornando o mesmo ÔBA. Mas num desses pensamentos relâmpago, me pareceu estranho e pouco original retornar a mesma coisa que ele acabara de dizer. Aí, não sei se tentei voltar atrás com meu IAÊ inicial, ou se tive a infeliz idéia de transformar ÔBA em ÊBA.
Acabei dizendo IAUÊBA!
Continuei caminhando tranqüilamente em direção ao meu carro como se nada tivesse acontecido, mas impressionado com a peculiaridade do que eu acabara de dizer. Agora imagine o que não deve ter passado pelo cérebro do outro cara...
IAUÊBA. Foi o cumprimento mais estranho que já emiti. IAUÊBA. Fantástico.
23.7.09
Tergiversa
"(…) e talvez seja isso que nos leve a ler romances e crônicas e a ver filmes, a busca da analogia, do símbolo, a busca do reconhecimento, não do conhecimento. Contar deforma, contar os fatos deforma os fatos e os tergiversa e quase os nega, tudo o que se conta passa a ser irreal e aproximado embora seja verídico, a verdade não depende de que as coisas tenham sido ou acontecido, mas de que permaneçam ocultas e sejam desconhecidas e não contadas, enquanto se relatam ou se manifestam ou se mostram, mesmo que seja no que parece mais real, na televisão ou no jornal, no que se chama realidade ou vida ou vida real até, passam a fazer parte da analogia e do símbolo, já não são fatos, mas se transformam em reconhecimento. A verdade nunca resplandece, como diz a fórmula, porque a única verdade é a que não se conhece nem se transmite, a que não se traduz em palavras nem imagens, a encoberta e não averiguada, e talvez por isso se conte tanto e se conte tudo, para que nunca tenha ocorrido nada, uma vez que se conta."
Javier Marías, Coração tão branco.